Reflexões Sobre o "Canto do Galo"
Ao estudarmos a passagem de Lc 22.21-34, nos defrontaremos com a conhecida frase proferida por Jesus no verso 34: "Pedro, não ressoará hoje o galo até que três vezes me negarás conhecer" (minha tradução).
Tradicionalmente, esta referência feita ao “canto do galo” sempre foi
interpretada ao pé da letra, ou seja, um galo, de fato, cantou no
episódio da negação de Pedro. Contudo, como iremos descobrir nas linhas
que seguem, tal tradição pode não refletir os fatos exatamente como
aconteceram.
Era
o galo conhecido no Antigo Testamento? Bem, de acordo com a Vulgata, o
termo “gallus” aparece em Is 22.17, Jó 38.36 e Pv 30.31. Em Is 22.17 o
termo é a tradução de geber, que a maioria das versões modernas interpreta como “homem”. Jó 38.36 traz o vocábulo sekwi, cujo significado é completamente disputado. E Pv 33.31 traz zarzir, palavra cujo significado é novamente disputado. Já a LXX traz nestes lugares (respectivamente) andra, poikiltiken e alektor. Além disso, a Vulgata de Tobias 8.11 traz circa pullorum cantum, literalmente “sobre o canto das galinhas”, uma parte da noite, “canto do galo”.[1]
Fitzmeyer ainda traz outro interessante comentário sobre este assunto, dizendo:
[...]
de acordo com o Baba Qama 7.7 era proibido “criar galinhas em Jerusalém
por causa das coisas santas”, e os sacerdotes estavam proibidos de
criá-las em todo lugar na terra de Israel. [...] Ainda que o regulamento
mishnaico não seja certamente válido antes do ano 70 em Jerusalém, a
proibição pode ter tido força naquele tempo.[2]
E
o erudito do Novo Testamento, William Barclay, também faz referência a
esse canto do galo, acrescentando, aliás, alguns dados inusitados, os
quais transcrevemos abaixo:
Pode
bem ser que o canto do galo não fosse o canto de uma ave; e desde o
começo não pretende significar isso. Acima de tudo, a casa do Sumo
Sacerdote estava no centro de Jerusalém. E certamente não haveria um
galinheiro no centro da cidade. De fato, havia uma regra na lei judia,
segundo a qual era ilegal ter galos e galinhas na cidade santa, porque
eles sujavam as coisas santas. Mas o período das três da madrugada foi
chamado de canto do galo, e por essa razão. Naquela hora, a guarda romana era trocada no castelo de Antonia, e o sinal da mudança da guarda era um toque de trombeta. O termo latino para aquele toque de trombeta era gallicinium, que significa canto do galo.
É possível que assim que Pedro fez sua terceira negativa, a trombeta da
muralha do castelo ecoou sobre a adormecida cidade... e Pedro lembrou: e
por causa disso ele derramou o seu coração.[3]
Ora,
se quisermos entender melhor o porque dessa discussão entre o “canto do
galo literal” e “canto do galo simbólico”, devemos nos reportar neste
momento ao texto do evangelho de Marcos 13.35-37, o qual diz:
35Vigiai, portanto, porque não sabeis quando o senhor da casa voltará: à tarde, à meia-noite, ao canto do galo, ou de manhã, 36para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo. 37E o que vos digo, digo a todos: vigiai!
Esse
texto de Marcos lança uma boa luz sobre a questão em debate. Segundo
ele, nós podemos verificar que os romanos dividiam os dias em períodos
de três em três horas. E, no que se refere ao período noturno, tais
períodos de três horas eram chamados de vigílias. Essas vigílias, por
sua vez, demarcavam cada período de três horas, nos quais funcionava
cada turno do serviço de guarda. A primeira vigília da noite começava às
18:00h e ia até às 21:00h; a segunda vigília começava às 21:00h e ia
até à meia-noite; a terceira vigília começava à meia-noite e ia até às
3:00h da madrugada; e a quarta vigília ia das 3:00h da madrugada até às
6:00h horas da manhã.[4]
Acontece, porém, que freqüentemente os judeus se expressavam de forma
abreviada quando se referiam a essas vigílias da noite. Assim, quando
encontramos no verso 35 a palavra “tarde”, esta era a expressão com a
qual se referiam ao fim da primeira vigília, ou seja, 21:00h.
“Meia-noite” indicava o fim da segunda vigília. “Canto do galo” era o
termo usado por eles para o fim da terceira vigília, ou 3:00h da
madrugada. E “de manhã” era o modo como se referiam ao fim da quarta
vigília, ou 6:00h da manhã.[5]
Se essa teoria estiver correta, então quando Jesus diz em Marcos 14.30: “esta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes me negarás!”,
ele estava fazendo menção ao período compreendido entre as 3:00h da
madrugada e as 6:00h da manhã. Portanto, este “cantar do galo” não era
uma referência à ave que pertence à família dos galináceos, mas sim uma
alusão ao toque da trombeta, conhecido em latim como gallicinium. Aliás, a expressão grega fonesei, encontrada
em Lc 22.34, que as nossas versões em português traduzem como “cantará”
(Cf. ARC, BJ) ou “cante” (Cf. ARA, BLH, NVI), também pode ser traduzida
como “ressoará”.[6]
Então, se estivermos corretos em nossa interpretação, a tradução que
proponho à passagem de Lc 22.34 “não ressoará hoje o galo”, é um
latinismo[7]
empregado pelo evangelista, o qual, por sua vez, foi extraído de
Marcos, o mais antigo dos evangelhos que, em seu vocabulário, empregou
vários termos provenientes da linguagem técnica militar.[8]
O fato de Marcos ter escrito o seu evangelho muito provavelmente em
Roma, de acordo com os testemunhos de Irineu e Clemente de Alexandria[9], explica porque ele estaria fazendo referência ao gallicinium (romano) ou à alektorophonia (equivalente grego) em
seus escritos. De qualquer forma, uma pergunta fica no ar: no episódio
da tripla negação de Pedro, um galo cantou ou uma trombeta ressoou?
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