Rádio EFTEPRO

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Galo ou Som de trombeta?



Reflexões Sobre o "Canto do Galo"

Ao estudarmos a passagem de Lc 22.21-34, nos defrontaremos com a conhecida frase proferida por Jesus no verso 34: "Pedro, não ressoará hoje o galo até que três vezes me negarás conhecer" (minha tradução). Tradicionalmente, esta referência feita ao “canto do galo” sempre foi interpretada ao pé da letra, ou seja, um galo, de fato, cantou no episódio da negação de Pedro. Contudo, como iremos descobrir nas linhas que seguem, tal tradição pode não refletir os fatos exatamente como aconteceram.
Era o galo conhecido no Antigo Testamento? Bem, de acordo com a Vulgata, o termo “gallus” aparece em Is 22.17, Jó 38.36 e Pv 30.31. Em Is 22.17 o termo é a tradução de geber, que a maioria das versões modernas interpreta como “homem”. Jó 38.36 traz o vocábulo sekwi, cujo significado é completamente disputado. E Pv 33.31 traz zarzir, palavra cujo significado é novamente disputado. Já a LXX traz nestes lugares (respectivamente) andra, poikiltiken e alektor. Além disso, a Vulgata de Tobias 8.11 traz circa pullorum cantum, literalmente “sobre o canto das galinhas”, uma parte da noite, “canto do galo”.[1]
Fitzmeyer ainda traz outro interessante comentário sobre este assunto, dizendo:

[...] de acordo com o Baba Qama 7.7 era proibido “criar galinhas em Jerusalém por causa das coisas santas”, e os sacerdotes estavam proibidos de criá-las em todo lugar na terra de Israel. [...] Ainda que o regulamento mishnaico não seja certamente válido antes do ano 70 em Jerusalém, a proibição pode ter tido força naquele tempo.[2]
E o erudito do Novo Testamento, William Barclay, também faz referência a esse canto do galo, acrescentando, aliás, alguns dados inusitados, os quais transcrevemos abaixo:

Pode bem ser que o canto do galo não fosse o canto de uma ave; e desde o começo não pretende significar isso. Acima de tudo, a casa do Sumo Sacerdote estava no centro de Jerusalém. E certamente não haveria um galinheiro no centro da cidade. De fato, havia uma regra na lei judia, segundo a qual era ilegal ter galos e galinhas na cidade santa, porque eles sujavam as coisas santas. Mas o período das três da madrugada foi chamado de canto do galo, e por essa razão. Naquela hora, a guarda romana era trocada no castelo de Antonia, e o sinal da mudança da guarda era um toque de trombeta. O termo latino para aquele toque de trombeta era gallicinium, que significa canto do galo. É possível que assim que Pedro fez sua terceira negativa, a trombeta da muralha do castelo ecoou sobre a adormecida cidade... e Pedro lembrou: e por causa disso ele derramou o seu coração.[3]
Ora, se quisermos entender melhor o porque dessa discussão entre o “canto do galo literal” e “canto do galo simbólico”, devemos nos reportar neste momento ao texto do evangelho de Marcos 13.35-37, o qual diz:

35Vigiai, portanto, porque não sabeis quando o senhor da casa voltará: à tarde, à meia-noite, ao canto do galo, ou de manhã, 36para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo. 37E o que vos digo, digo a todos: vigiai!

Esse texto de Marcos lança uma boa luz sobre a questão em debate. Segundo ele, nós podemos verificar que os romanos dividiam os dias em períodos de três em três horas. E, no que se refere ao período noturno, tais períodos de três horas eram chamados de vigílias. Essas vigílias, por sua vez, demarcavam cada período de três horas, nos quais funcionava cada turno do serviço de guarda. A primeira vigília da noite começava às 18:00h e ia até às 21:00h; a segunda vigília começava às 21:00h e ia até à meia-noite; a terceira vigília começava à meia-noite e ia até às 3:00h da madrugada; e a quarta vigília ia das 3:00h da madrugada até às 6:00h horas da manhã.[4] Acontece, porém, que freqüentemente os judeus se expressavam de forma abreviada quando se referiam a essas vigílias da noite. Assim, quando encontramos no verso 35 a palavra “tarde”, esta era a expressão com a qual se referiam ao fim da primeira vigília, ou seja, 21:00h. “Meia-noite” indicava o fim da segunda vigília. “Canto do galo” era o termo usado por eles para o fim da terceira vigília, ou 3:00h da madrugada. E “de manhã” era o modo como se referiam ao fim da quarta vigília, ou 6:00h da manhã.[5]
Se essa teoria estiver correta, então quando Jesus diz em Marcos 14.30: “esta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes me negarás!”, ele estava fazendo menção ao período compreendido entre as 3:00h da madrugada e as 6:00h da manhã. Portanto, este “cantar do galo” não era uma referência à ave que pertence à família dos galináceos, mas sim uma alusão ao toque da trombeta, conhecido em latim como gallicinium. Aliás, a expressão grega fonesei, encontrada em Lc 22.34, que as nossas versões em português traduzem como “cantará” (Cf. ARC, BJ) ou “cante” (Cf. ARA, BLH, NVI), também pode ser traduzida como “ressoará”.[6] Então, se estivermos corretos em nossa interpretação, a tradução que proponho à passagem de Lc 22.34 “não ressoará hoje o galo”, é um latinismo[7] empregado pelo evangelista, o qual, por sua vez, foi extraído de Marcos, o mais antigo dos evangelhos que, em seu vocabulário, empregou vários termos provenientes da linguagem técnica militar.[8] O fato de Marcos ter escrito o seu evangelho muito provavelmente em Roma, de acordo com os testemunhos de Irineu e Clemente de Alexandria[9], explica porque ele estaria fazendo referência ao gallicinium (romano) ou à alektorophonia (equivalente grego) em seus escritos. De qualquer forma, uma pergunta fica no ar: no episódio da tripla negação de Pedro, um galo cantou ou uma trombeta ressoou?
Extraído parcialmente de: Trabalho Exegético Sobre a Passagem de Lc 22.31-34, pp.18-20, 2007. Autor: Carlos Augusto Vailatti.

Nenhum comentário:

Postar um comentário